12 de setembro de 2012

O DIREITO DE VIVER E DE MORRER


"Decisão do Conselho Federal de Medicina muda a conduta do médico brasileiro ao reconhecer a legitimidade do testamento vital, documento no qual os pacientes registram o tratamento que desejam receber quando a morte se aproximar." (Veja, ed. 2286 de 12/09/12, pág. 98)


Desde 1980 que dedico atenção à questão dos transplantes de órgãos e o resumo da minha posição é: os conceitos de morte jurídica e morte médica devem ser unificados.

As duas ciências cuidam da proteção da vida, cada uma a seu modo: o direito cuida de inibir que a vida seja extinta por ação humana e a medicina cuida de que a vida seja mantida por ação humana.

A medicina, por lidar com o "bem material" tem maior precisão no diagnóstico da vida provável enquanto o direito ainda debate o direito do feto anencéfalo ao nascimento.

Tomando como argumento a morte encefálica ensejadora - mediante autorização do paciente ou interessados - da retirada de órgãos para transplante, é visto que alguns órgãos não podem ser retirados de cadáveres, logo, o doador potencial está vivo - vida cardíaca - antes de ser iniciado o procedimento de retirada. No entanto, a ação humana que produz a morte cardíaca - geralmente a retirada dos suportes artificiais - é aceita pelo direito diante do diagnóstico de vida improvável, o que é por mim entendido como a perda da capacidade de expressão e interação, ou perda da capacidade de estabelecer conexões com a externalidade.

Expressão e interação são atributos da função inteligente e complexa do ser humano que o distingue na escala animal como superior, e isto impede que os humanos sejam tratados como simples animais, em relação à sua vida e morte, evitando, assim, a infusão de conceitos religiosos e filosóficos no debate, dado que a vida (anima) passa a ser fato e valor concomitantes, dispensando, neste passo, a busca de uma razão ou fundamento para a vida.

Tal enfoque não esteriliza a concepção de vida, apenas e para efeito desta análise, confina o objeto na dicotomia vida/morte.

O direito, ao lidar com a morte presumida, se vale de um protocolo de diagnóstico de vida improvável ou morte provável, atribuindo efeitos de morte "real".

A medicina também se vale de um protocolo de diagnóstico de vida improvável ou morte provável no caso do morte encefálico, que nada mais é do que um morto presumido.

É possível que o caminho de pacificação seja a construção de um protocolo comum de probabilidade, ainda que, para o direito não se meter em seara alheia apenas aceite o protocolo médico como causa de justificação pois, deveras, as duas ciências estão dando atenção à morte presumida e a ciência médica, evidentemente, terá maior grau de certeza sobre tal.

O direito entra em cena porque o testamento vital é uma manifestação de vontade sobre bem jurídico/material relevante, protegido  (homicídio, suicídio, aborto) contra ação, induzimento ou auxílio, ou de qualquer modo de concorrência para a morte, e isto indica que o cumprimento do testamento vital deve ser uma ação legítima, como o é no caso dos transplantes.

A morte é um evento natural que a medicina pode pode adiar em determinadas circunstâncias de conhecimento, tecnologia e técnica, mas  não pode evitar quando as circunstâncias naturais a determinam, enfim, a medicina tem limites, expansíveis, mas tem, assim como o acesso aos recurso da medicina também é limitado, o que impõe morte natural sem intervenção prorrogadora.

Existe uma subliminar indicação de que o testamento vital será um privilégio para os que tiveram acesso aos recursos médicos, pois sem acesso estaria reservada a eutanásia social, ou mistanasia.

A mistanasia é um fenômeno sistêmico, qual seja, ocorrerá por força da distribuição da população em estratos econômicos e assistência menor para os estratos inferiores, e as pessoas morrerão por não terem acesso aos recursos,

O testamento vital cuida de situação na qual o titular da vida renuncia aos recursos aos quais teve acesso e as hipótese ganham equivalência quanto ao fim natural da vida.

Possível, resumir, então, que o testamento vital é a expressão da vontade de morrer naturalmente, o que é legítimo, restando à medicina, na sua missão, valer-se apenas de meios que evitem sofrimento desnecessário para o testador e para os que o acompanham no curso terminal, o que não deixa de ser um ato de compaixão, a mesma compaixão que induz as manifestações de natureza emocional de parentes e amigos na terminação dos não medicamente assistidos.

Nenhum comentário: