9 de setembro de 2012

The Flash: o reformador penal confuso.

A realidade é composta por dois "mundos": o mundo material, palpável, constituído por coisas ao alcance dos sentidos de percepção (visão, tato, olfato, audição e paladar); e o mundo imaterial, impalpável, constituído por "coisas" que não se subsumem aos sentidos de percepção (idéias, pensamentos, valores etc.).


Tais mundos são melhor compreendidos do ponto de vista da propriedade: um livro pode ser adquirido numa livraria e, como coisa material, palpável, torna-se propriedade do comprador, mas a "idéia", imaterial e impalpável, exposta no livro continua sendo propriedade do autor.

O papel, a tinta e as palavras das quais o livro é composto servem de meio material, ou suporte, para que o sentido da visão transfira para o "cérebro" do leitor o que está no "cérebro" do autor.

Do ponto de vista do crime tanto é possível apropriar-se do livro (objeto material) como da idéia do autor (objeto imaterial). Caso as apropriações não sejam lícitas é possível dizer que, no primeiro caso foi alterada a realidade material (o livro mudou de lugar) e no segundo a realidade imaterial (a idéia mudou de autor), situações que, juridicamente tratadas, resultam em dano ao fato e dano ao direito.

Dano ao fato (palpável) e dano ao direito (impalpável) são resultados distintos que interessam para o Direito Penal por envolverem o bem jurídico propriedade.

Outros dirão que ocorreu lesão ao fato e lesão ao direito, ou ofensa ao fato e ofensa ao direito e, embora não usuais, são corretos os termos danador, lesionador e ofensor, para designarem os autores.

Do ponto de vista da autoria, o danador, o lesionador e o ofensor podem se encontrar nas seguintes situações:

1) não possui capacidade instrumental e ideológica para fazer e não faz, ou seja: não tem potência (meios e vontade) para danar, lesionar ou ofender;

2) possui capacidade instrumental e ideológica para fazer e não faz, ou seja: tem potência (meios e vontade) para danar, lesionar ou ofender;

A variante é que um ou outro podem possuir apenas a capacidade instrumental ou apenas a vontade, mas todas as combinações de potência serão indiferentes para o Direito Penal caso não produzam nenhuma alteração (resultado) na realidade material ou imaterial.

A existência de uma gradação entre 1 e 2 - o que é uma compreensão leiga - permite dizer que existe uma gradação de periculosidade (!) ou de capacidade para fazer, que recebeu da doutrina penal correto tratamento:

"A  periculosidade  foi  abandonada  e  aparentemente  substituída  pelo "potencial  ofensivo"  definido  por  Francesco  Carnelutti  em  sua  "Teoria Generale del Reato" publicada em 1933, como sendo "o crime visto pelo lado do autor", e introduzida no cenário penal brasileiro pela Constituição Federal
de 1988 (art. 98, I)." (Serrano Neves, in Da Insustentável Incompletude do Sucinto, Editora Liber Liber, http://editoraliberliber.net)

Carnelutti deixa à conclusão da existência do crime visto pelo lado do resultado sempre previsto num tipo, só que o tipo não tem "potência", já que é um modelo, um gabarito, uma simples descrição fático/valorativa.

O crime é, então, uma integração necessária entre um ofensor (danador ou lesionador) e um ofendido (danado ou lesionado), e isto autoriza dizer que existe "ofensa potencial", sim, mas apenas como capacidade do autor para ofender, mas nunca como resultado do agir do autor.

O resultado do agir do autor será sempre uma "ofensa efetivada",  um dano, uma lesão, seja ao fato ou ao direito.

Crimes de perigo ou crimes de atentado são entes jurídicos perfeitamente definidos:

- crime de perigo abstrato ocorre quando o agir do autor é dirigido para o "valor do fato previsto";
- crime de perigo concreto ocorre quando o agir do autor é dirigido para o "fato valorado".
- crime de atentado ocorre quando o agir do autor é dirigido para um "valor" inerente a fatos que podem ser previstos.

Nos três casos não existe resultado material, isto é, são danos (lesões ou ofensas) ao direito, conquanto possam existir consequências que serão percebidas pelos sentidos e interpetadas como "dano".

Não é, então, de boa razão, tratar as hipóteses de perigo e atentado como "ofensa potencial" dado que veio a existir uma ofensa efetivada, sensível.

A potência do motor de um veículo existe "em potencial" mesmo quando ele está desligado e podemos saber pelos manuais a quantidade dela, e o único pensamento possível em relação ao motor desligado é de que nada vai acontecer porque o motor não está "agindo", isto é, não existe fato previsível embora existam fatos possíveis.

Introduzir a chave na partida é um atentado à imobilidade do veículo, dado que previsível o fato de que o motor será ligado para movimentar o veículo.

Fazer o motor funcionar é um perigo abstrato de movimentar o veículo, dado que os motores ligados podem movimentar o veículo.

Engatar a primeira marcha é um perigo concreto de movimentação do veículo, dado que os veículos são movimentados pelo motor com as marchas engatadas.

Soltar a embreagem e por o veículo em movimento é um dano ao estado de imobilidade.

Ofensa potencial é um motor desligado.

Dai o pecado mortal cometido pelos projetistas do Novo Código Penal Brasileiro:

"O fato criminoso
Art. 14. A realização do fato criminoso exige ação ou omissão, dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial ou efetiva, a determinado bem jurídico.
Parágrafo único. O resultado exigido somente é imputável a quem lhe der causa e se decorrer da criação ou incremento de risco tipicamente relevante, dentro do alcance do tipo."

Pior é que a última parte do parágrafo único quer dizer. exatamente: "Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.", preceito vigente que não sofreu proposta de alteração."

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