Não precisamos de lei seca porque as nossas leis, qual roupa no varal, secam naturalmente sob o inclemente sol da impotência governamental.
O modismo da criação de leis da hora que atendem clamores midiáticos ou outros interesses tem produzido desconforto para os juristas, visto que os coloca em posições estranhas: ou interpretam em desfavor da parte para poderem aplicar ou interpretam a favor da parte para não aplicar, embora as duas posições se fundamentem na no esvaziamento da pretensão de eficácia por afrontamento, quando não violação, das garantias individuais.
As leis surgem com o nome, ou apelido, da situação - e até de pessoa - em destaque nas notícias da hora, e tudo começou com a Lei Fleury, passou pela Lei Medina e Maria da Penha, e chegou na lei seca, tão seca que o governo permite que a publicidade dos fabricantes de bebidas alcoólicas inclua o "se for beber não dirija", o que reforça a associação entre o álcool e a direção.
Deveras, o primeiro requisito para a habilitação na condução de veículo automotor é a aptidão física e mental, por sobre a qual é desenvolvida e aferida a habilidade para dirigir, o que atende ao principal objetivo do Código de Trânsito Brasileiro que é a segurança, pois o elemento mais sensível do "jogo de colaboração em confiança" é a pessoa humana, logo, qualquer afetação para menor nas aptidões ou no exercício das habilidades compromete a segurança.
Tudo isto é sabido mas a fiscalização é rala e frouxa, permitindo que as infrações à segurança sejam cometidas com a certeza de que, escapando de produzir um dano grave, a punição tanto demorará que é possível fazer de novo e de novo impunemente.
As autoridades tanto perderam o senso de segurança que a fiscalização do trânsito está sendo automatizada em grau máximo: máquinas versus máquinas, e os danos à pessoa ficam como simples consequências das infrações cometidas, o que é comprovado pelas falas sobre "segurança no trânsito", sem uma palavra siquer para "segurança das pessoas no trânsito".
Sou do tempo em que a pressa na ultrapassagem de um sinal fechado era "compensada" com um fiscal parando o veículo e advertindo ou autuando, mas os tempos mudaram e parece ter se formado a cultura de que o condutor tem direito garantido à pressa e só será punido se causar algum dano, e o princípio da confiança reitor do jogo de colaboração transformou-se num jogo de dolo eventual: se não ocorrer resultado danoso avance uma casa no tabuleiro.
O infrator contesta tudo, da foto do radar à anotação do fiscal, o que é um direito, com certeza, mas o espaço de contestação foi tão alargado que os princípios da legalidade e da presunção de veracidade do ato administrativo foram perdidos de vista.
A presunção de veracidade do ato administrativo praticado por um agente legal de trânsito inverte o ônus da prova, mas os agentes de trânsito foram desmoralizados porque tão sujeitos à propina quanto os agentes dos mais altos escalões. No entanto, substituem-se os agentes de trânsito por máquinas fiscalizadoras, mas os agentes dos mais altos escalões permanecem atuando "de mãos próprias".
É o "sistema" em ação, sistema que coloca os agentes policiais atentos e eficazes em relação a um porte de arma de fogo, mas os retira das ruas para que o porte e disparo de "armas de trânsito" possa ocorrer livremente.
Cortam os custos da fiscalização do trânsito e incentivam a venda de carros, e ninguém faz o óbvio prognóstico da desordem crescente, ou se faz, ignora, porque é preciso vender carros.
Homicídios e mortes no trânsito se igualam nas estatísticas, mas o trânsito ganha por meio corpo pois para cada morto produz dois aleijados.
O homicida em regra está com raiva de alguém e o mata, o condutor de veículo confia que poderá fazer o que quiser e recorrer da punição porque o radar não tem o selo de aferição ou atribui ao agente de trânsito a pecha da mentira. Ou está com raiva de todo mundo, ou está indiferente, ou está hostil, enfim: não tá nem ai, mas só até o momento em que se torna vítima do trânsito.
Beber do próprio veneno é a única coisa que está trazendo o condutor de veículo a sua originalidade de ser um animal racional.
Ai entra o Direito Penal com leis que tentam obrigar ao cumprimento de outras leis e é construído o Estado Democrático de Direito Penal, figura muito antiga, visto que os pais de família, antigamente, deixavam a "taca" (chicote plano feito de couro cru) pendurada na parede da sala para que a mãe, impotente no controle da récua de filhos, mostrasse ao filho infrator a taca e proferisse a decisão preventiva: se repetir conto para seu pai. Repetia, o pai chegava, a mãe contava, a taca comia no lombo, pouco importava que as circunstâncias da família fossem iguais às do trânsito: fiscalização deficiente e muitos filhos, digo, veículos.
Fonte da ilustração: gartic.uol.com.br
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