25 de outubro de 2012
O barbante e a toga
O DIREITO JOGADO NAS RUAS - O barbante e a toga.
por Serrano Neves
Cenário: plenário do Supremo Tribunal Federal.
Enredo: julgamento do mensalão.
Cena 1: câmera fechada em close americano em algum ministro.
Na frente de uma tevê o espectador admira o semblante sério e ouve a fala, já ciente de que deverá, depois, acessar algum outro canal que disponha de um tradutor de "esseteefes" a língua falada pelos ministros.
O nível da linguagem tem muito de culto e um tanto bom de hermético: sábias fontes e palavras reservadas, que só os iniciados compreendem.
Para os leigos o ministro presidente, em homenagem ao povo, insiste em jogar o direito na rua fazendo a suprassuma: contra, a favor, condenado, absolvido, na sua vez de aparecer na tela.
Cena 2: a câmera abre o plano e aparece uma bancada atrás do ministro, sobre a bancada pilhas de volumes de documentos colecionados em autos.
Na frente da tevê o espectador percebe que os volumes estão atados uns aos outros com barbante e, por vezes todos de um único processo amarrados em um pacote, com barbante.
Na mesma tomada de cena aparece também o notebook do ministro como um enfeite pois a leitura da fala é feita em papel.
Inculto por vezes mas não tolo como regra o telespectador percebe a estranha presença do barbante e do papel num cenário tecnológico que envolve satélites e cabos de fibra ótica, e soma isto ao verbo rendeiro, rendeiro de renda de bilros: complicados arabescos e florais tecidos com fios finos e complicados movimentos que na utilidade prática tornar-se-ão um simples babado.
Sem demérito para os ministros e para as rendeiras, nem para o papel cuja capacidade de resistência às mudanças "climáticas" só é comparável à da cianobactéria, ou seja, o mundo mudou e as danadas continuam ai.
Se as câmeras fossem retiradas não saberíamos se a cena é de 2012 ou 1712, e é o barbante que nos diz isto, com a clareza de ao tempo do século 18 ser chamado de "penso", o curativo que mantém unidas as partes "fraturadas" dos mesmos autos.
Tenho bom grau de certeza para afirmar que a expressão "apensar os autos" tem pelo menos 300 anos de existência, assim como o papel. Só não tenho certeza objetiva se o discurso jurídico tem a mesma idade porque não li autos de séculos passados, mas os indícios são veementes (!) pois a tríade atual (barbante, papel, discurso) tem pelo menos dois elementos trisseculares: papel e barbante.
Mudam as leis, amplia-se o universo do Direito, atualiza-se a jurisprudência, e o barbante resiste junto com seu xifópago papel.
Ontem (24/10) tendo ao fundo volumes de autos atados por barbante vi o Ministro Relator lançar mão de uma tabela em papel para ajustar um cálculo numérico de pena privativa de liberdade.
Pois é, o notebook do ministro não tinha uma calculadora de tempos e ele fez questão de ressaltar que usava a tabela "desde os tempos de".
E ao fundo o barbante, o barbante!
O barbante fazendo parecer que o processo eletrônico é simples meio de economizar papel e esforço de carregar papel de um lado para o outro.
A juscibernética nasceu morta, parece.
Ó vós que juridicais, desbarbantai os volumes, despapelizai as informações e pisai os pés do discurso jurídico na terra, para que os mortais possam entender quando condenais ou absolveis e então possam contemplar a face de Temis desvendada.
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